As jovens musicistas dos "ospedali" de Veneza
- 12 mar, 2016
Como parte da série #MulheresNEOJIBA, proposta para a semana do Dia Internacional da Mulher, apresentamos hoje a história de mulheres que tiveram um papel marcante na história da música ocidental.
Do Renascimento até o final do século XVIII, os primeiros conservatórios de música em Veneza, no norte da Itália, eram de fato “hospitais” (ospedali, em italiano). O ensino da música era oferecido unicamente às mulheres internas destas instituições. A história das meninas musicistas de Veneza retrata esse modelo de ensino musical para jovens em situação de vulnerabilidade; um caso marcante na história cultural europeia.
Já a partir do século XVI, a república de Veneza era um centro de grande importância cultural na Europa. Era um dos principais lugares de impressão de partituras musicais e onde a produção musical era próspera, tanto na Basílica de São Marcos, quanto nos inúmeros teatros da cidade. Paralelo a esse cenário de intensa atividade musical, a república de Veneza enfrentou severas pragas e fome, o que provocou grandes fluxos migratórios e ampliou o contingente de pessoas vivendo em situação precária na cidade.
[caption id="attachment_5679" align="alignleft" width="300"] Igreja Santa Maria della Visitazione, dita a Pietà.[/caption]
Diante deste contexto, a caridade e a filantropia se tornaram o centro das preocupações das autoridades e da nobreza, o que impulsionou a fundação de quatro hospitais (ospedali, em italiano) - instituições religiosas destinadas ao acolhimento dos doentes, órfãos, crianças abandonadas e das pessoas que precisavam de abrigo e cuidado. Os hospitais criados foram: Ospedale di San Lazzaro dei Mendicanti (Hospital de São Lázaro dos Mendigos), Ospedale dei Derelitti (Hospital dos Pobres) ou Ospedaletto, Ospedale degli Incurabili (Hospital dos Incuráveis) e Ospedale della Pietà (Hospital da Piedade), que acolhia o maior número de crianças.
[caption id="attachment_5680" align="alignleft" width="300"] O edifício do Ospedale degli Incurabili hoje abriga a sede da Academia de Belas Artes de Veneza.[/caption]
Nestas instituições e período histórico, os meninos recebiam uma educação escolar e religiosa até o momento adequado para entrar na vida ativa e trabalhar. Já as meninas aprendiam a cuidar de um lar e a fazer artesanato. As que mostravam um certo talento musical eram escolhidas para fazer parte das figlie di coro, nome dado às musicistas e coristas da instituição. Os ospedali tinham como peculiaridade o ensino da prática musical exclusivo e reservado às mulheres, ao contrário das instituições de Nápoles; outra grande capital da produção musical no século XVIII. Nos ospedali ensinava-se música vocal e instrumental às mais talentosas das jovens beneficiárias, as meninas órfãs ou filhas ilegítimas abandonadas.
As atividades musicais e o renome artístico destas instituições aumentaram consideravelmente até o último quarto do século XVIII. Os melhores músicos da Itália atuavam como professores e compunham as obras (oratórios, sonatas, concerti, etc.) que as orquestras de mulheres interpretavam nas vésperas e nos ofícios das igrejas ligadas ao ospedale (hospital). Entre eles, mestres de capela da Basílica de São Marcos e compositores ativos em muitos teatros da cidade, como Johann Adolph Hasse, Nicola Porpora e Baldassare Galuppi. A metodologia do ensino musical também contava com uma estrutura horizontal. As musicistas mais experientes monitoravam seus colegas, paralelo ao trabalho de formação que recebiam de grandes professores.
[caption id="attachment_5683" align="alignleft" width="220"] Antonio Vivaldi (1678 - 1741), ativo na Pietà entre 1704 e 1740.[/caption]
Entre os compositores que atuaram nestes conservatórios de música, o mais conhecido hoje é Antonio Vivaldi. O “padre ruivo” (apelido derivado da cor caraterística do seu cabelo) iniciou suas atividades no Ospedale della Pietà em 1704, onde se tornou o primeiro professor de violino da instituição. Entre as obras escritas para as mulheres da Pietà, o Gloria e o oratório Juditha Triumphans estão entre as mais conhecidas. Nas peças, as mulheres interpretavam todas as partes instrumentais e assumiam todas as performances vocais, inclusive as vozes mais graves.
As igrejas se tornaram logo salas de concertos devido à virtuosidade das musicistas, que atraiam visitantes de toda Europa até o final do século XVIII. É o que nos revela vários testemunhos escritos desse período. O filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau descreveu as musicistas do Ospedale dei Mendicanti como “anjos de beleza” na autobiografia As Confissões. O musicólogo britânico Charles Burney e o então jovem autor alemão Goethe dedicaram trechos dos seus diários de viagem na Itália à experiência musical que vivenciaram nos hospitais de Veneza. Ao contrário dos teatros, dentro das igrejas não era permitido aplausos. Isso gerava situações peculiares quando o público queria demostrar admiração, como descreveu Burney; autor conhecido pelos seus relatos de viagem em toda a Europa cultural durante o Iluminismo: “Nos hospitais e nas igrejas não é permitido aplaudir, como é habitual nas óperas. As pessoas então tossem, pigarream, assoam o nariz para expressar admiração”, relata Burney no seu livro “The Present State of Music in France and Italy”.
[caption id="attachment_5682" align="alignleft" width="300"] Interior da igreja da Pietà. As musicistas tocavam na galeria, atrás das grades.[/caption]
Como parte dos ideais humanistas da época de sua fundação, estes hospitais buscavam oferecer assistência social às crianças abandonadas, enquanto garantiam um alto nível musical da orquestra e do coro formados pelas mulheres. A atividade dos ospedali de Veneza, isto é a qualidade das suas musicistas e as condições ideais oferecidas naquele período para a prática musical, estimularam a criação artística de alguns dos maiores compositores da história da música europeia. Uma mistura de beleza, excelência e altruísmo!
Para saber mais sobre as musicistas da Pietà:
Vivaldi's Women (documentário em inglês)